sexta-feira, 15 de maio de 2015

Projeto do Senado 'libera' guerra fiscal, diz consultor



Ao aprovar a quebra da unanimidade do quórum do Conselho Nacional da Política Fazendária (Confaz) exclusivamente para convalidar incentivos fiscais estaduais irregulares, com remissão de créditos, o Senado submeteu os Estados ao risco de um "modelo ensandecido", que dá "arma e munição" para que seja mantida por mais 15 anos a guerra fiscal do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Além disso, o Projeto de Lei Complementar do Senado (PLS) 130 eliminou a possibilidade de defesa dos governos estaduais que se sentirem prejudicados, o que fará "derreter" a arrecadação do imposto.

A opinião é do consultor Clóvis Panzarini, sócio da CP Consultores e ex­titular da Coordenadoria de Administração Tributária da Fazenda do Estado de São Paulo, de onde saiu em 2002, ao se aposentar após 35 anos de carreira na secretaria. O problema do projeto aprovado, diz, é que ele não condiciona a redução simultânea das alíquotas interestaduais de ICMS à convalidação dos incentivos. Com isso, os Estados terão perdão para os benefícios irregulares, cujos efeitos se manterão efetivos durante 15 anos. O que se discutia antes, lembra o consultor, era a redução gradativa da alíquota em oito anos, o que neutralizaria os benefícios fiscais e desmontaria a guerra.

Para ele, a aprovação do PLS 130 desequilibrou a situação dos Estados na tentativa de um acordo para o fim da guerra fiscal. Segundo ele, o projeto aprovado beneficia quem estava interessado em validar os benefícios irregulares, mas não em acabar a guerra fiscal. "Quem queria acabar com a guerra ficou no pior dos mundos", diz.

Apesar de atender ao interesse de alguns Estados e muitas empresas, Panzarini lembra que a guerra fiscal é especialmente nociva para o investidor sério. "A quebra de isonomia é o efeito mais importante da guerra fiscal, na qual produtos idênticos, concorrendo na mesma gôndola, possuem carga tributária diferente." A perda não é somente de transparência, destaca. "A guerra fiscal reduz o custo privado da produção e aumenta o custo social. Alguém paga essa conta e quem faz isso é a sociedade, com menos arrecadação, menos escolas e menos médicos", diz o consultor, que acompanha as discussões sobre ICMS desde a Constituinte de 1988.

Para Panzarini, o encaminhamento do PLS 130 à Câmara torna um acordo no Confaz mais urgente. Ele diz, porém, que o papel do governo central precisa ser mais duro. "É hora de o governo federal jogar o peso dele para resolver essa questão, como fez com a Resolução 13, para a guerra dos portos. Ninguém queria aquela resolução, mas naquela época o governo estava forte, preocupado com a balança comercial e fez valer seu peso."

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Qual o impacto da aprovação do PLC 130 na discussão da guerra fiscal?

Clóvis Panzarini: Os Estados estavam convergindo para a proposta do Convênio 70, no qual se previa a convalidação dos incentivos ilegais, o perdão do legado e a possibilidade de os benefícios serem mantidos por um prazo de transição de cerca de 15 anos, com algumas variações e exceções. Mas essa proposta também previa a convergência a alíquotas interestaduais menores de ICMS, condição que, se não aniquila totalmente a capacidade de fazer a guerra fiscal, pelo menos diminui muito o combustível. Hoje os Estados "guerreiros", com 12% de ICMS interestadual, têm esses 12% de munição. Ele diz: você finge que paga 12%, mas paga 3%, e eu te devolvo 9%. Esses 9% cobrem qualquer erro de localização da planta industrial. Quando você baixa a alíquota para 4% ou 7%, diminui muito a capacidade de o Estado guerreiro atrair a indústria. O único combustível da guerra fiscal é a alíquota interestadual. Seria uma confusão nos primeiros anos, mas aos poucos vai perdendo força a guerra fiscal porque o combustível dela, a alíquota interestadual, começa a evaporar. Isso é o que estava sendo negociado no Confaz. Estava se discutindo as regras de transição. O Congresso atropelou e aprovou no Senado o PLS 130, que autoriza o Confaz a aprovar por maioria de votos os 15 anos, a convalidação e ainda resolve o legado, mas se cala quanto à alíquota interestadual.

Valor: Isso desequilibra a situação dos Estados na discussão?

Panzarini: Sim, isso desequilibrou a discussão e dividiu os Estados. Aqueles que entraram no jogo só por conta do legado vão querer sair porque isso já está resolvido. É preciso fazer um pacote. Com uma perna só do modelo, o Estado que ganha não aprovará a outra perna. É preciso condicionar tudo. O que foi aprovado é um modelo ensandecido, que mantém a guerra por 15 anos e impede qualquer reação do Estado prejudicado. Esse é o ponto. O debate começou a ficar forte com a ameaça da súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal (STF), se discutiu e se chegou ao Convênio 70 no Confaz, mas aí o PLS 130 atropelou tudo. Se a lei sair assim, haverá um número de Estados que irão gostar e não irão mais discutir a redução de alíquotas. Isso manterá a guerra fiscal por 15 anos e sem a trava da insegurança jurídica. É o liberou geral. Como o combustível da guerra não vai se evaporar, cada Estado vai conceder benefício se quiser atrair a indústria. A perda de arrecadação será dramática, o ICMS vai derreter com isso, porque a única forma de se defender é também conceder benefícios. 15 anos é muito tempo. O Brasil não aguenta isso e acaba antes. Só ganha a empresa, o investidor. Ele não terá a insegurança jurídica em relação à validade do benefício. O setor privado fará mais pressão pelo benefício, porque não será mais ilegal. O problema é muito mais sério do que está se imaginando.

"A guerra fiscal reduz o custo privado e eleva o social. Quem paga a conta é a sociedade, com
menos escola e menos médicos"

Valor: Alguns argumentam que o benefício fiscal viabiliza o investimento...

Panzarini: A guerra fiscal não cria atividade econômica. Ela só muda a atividade econômica de lugar. É preciso pensar no Brasil como um todo. O país não vai crescer por conta da guerra fiscal, o que vai acontecer é que as empresas vão fazer leilão para pagar menos imposto. Com isso todos os Estados perdem e todas as empresas ganham.. Muitas vezes para subsidiar uma localização errada. O critério de eficiência econômica deixa de ser o parâmetro para a localização industrial. O parâmetro passa a ser o leilão.

Valor: Mas essa não é uma forma de a empresa buscar redução de carga tributária?

Panzarini: Redução de carga em troca de ineficiência locativa não me parece um bom negócio. Com isso, se socializa o custo privado. A guerra fiscal reduz o custo privado da produção e aumenta o custo social. Alguém paga essa conta e quem faz isso é a sociedade, com menos arrecadação, menos escola e menos médicos.

Valor: O senhor disse que as empresas ganham com a convalidação. Mas a falta de transparência nesses incentivos e leilões não amedrontam o investidor?

Panzarini: Sim, a quebra de isonomia é a coisa mais importante da guerra fiscal, na qual produtos idênticos, concorrendo na mesma gôndola, têm carga tributária diferente. Porque num leilão os contribuintes podem obter condições diferentes.

Valor: Esse quadro torna mais urgente um acordo dos Estados no Confaz?

Panzarini: Sim, a guerra fiscal é o mais grave problema do nosso sistema tributário. Fomos atropelados com uma maluquice do Congresso. A redução de alíquota saiu do cenário e se esvaziou o Confaz no debate. O Congresso avocou o debate. Se os Estados conseguirem o acordo no Confaz, o projeto de lei perde o objeto.

Valor: Mas o senhor acha que o consenso chega a tempo?

Panzarini: Segundo o secretário Tostes [José Tostes Neto, atual coordenador dos Estados no Confaz], há atualmente 23 ou 24 Estados fechados na proposta do Convênio 70. Se fechar os 27, perde objeto.

Valor: O sr. acha que todos os Estados teriam interesse em voltar a discutir a redução de alíquotas?

Panzarini: Certamente não. Essa é a dificuldade, há muito conflito, muito interesse. A guerra fiscal é um instrumento político poderoso, os Estados guerreiros irão perder força política. Os Estados vítimas de guerra fiscal vão perder arrecadação. Aí é que se chama o governo federal, com um fundo para compensar a perda política e outro para a perda financeira. Todo mundo topa perder dentro desse modelo, desde que seja ressarcido com os recursos da União.

Valor: O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, sinalizou recursos para esse fundos, na última reunião do Confaz...

Panzarini: Mas estamos na pior época para se discutir essa mudança no ICMS, porque comprometer recursos federais atualmente é complicado.

Valor: Mas isso não torna o acordo no Confaz mais remoto?

Panzarini: O Confaz vai achar uma solução, está muito próximo disso e muitos estão assustados com o PLS 130.
Está faltando solidariedade federativa.

Valor: Mas dá para contar com essa solidariedade?

Panzarini: Não, o PLS 130 foi induzido por Estados que queriam resolver o legado sem resolver o futuro. Quatro ou cinco Estados quiseram resolver o problema jurídico, sem perder a arma ou a munição. O problema é a tibieza do governo central. É hora de o governo federal jogar o peso dele para resolver essa questão, como fez com a Resolução 13, para a guerra dos portos. Ninguém queria aquela resolução, mas naquela época o governo estava forte, preocupado com a balança comercial e fez valer seu peso. Se o governo estivesse forte, três telefonemas da presidente da República resolveriam o problema. Se isso não for feito, não será aprovado convênio do Confaz. Uma minoria vai acabar fazendo prevalecer uma maluquice. Três ou quatro Estados querem se aproveitar da situação à custa de quebrar o Brasil.

Por Marta Watanabe

Fonte: Valor Econômico

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