sábado, 14 de junho de 2014

Itaquera: Um percurso de pedras duras em São Paulo

Copa de 1986. O Brasil vence a Argélia por 1 x 0, gol de Careca. Havia assistido ao jogo na casa de minha irmã – àquele  tempo, a única da família que tinha uma TV a cores em Itaquera. Encerrada a partida, meu pai crava: “E em 1994 vai ser aqui!”
Ele não sabia que erraria apenas no tempo. A Copa demoraria mais 20 anos para chegar ao Brasil (para a edição de 1994, o país receberia apenas dois votos na escolha da sede). Mas nem sequer imaginaria que o “aqui” estaria a apenas dois quilômetros de onde minha irmã morava.


À época, Itaquera era um bairro abandonado à própria sorte. Uma linha de metrô ainda estava sendo construída, mas já chegaria, em 1988, sobrecarregada. A estação ficaria quase três quilômetros distante do centro do bairro por questões políticas e de interesse econômico.  Mas já havia a esperança do estádio, a casa do Corinthians. Nas placas aplicadas no ato da inauguração da estação Tatuapé, em 1982, a lista de estações incluía o terminal “Corintião”.
Era esse o nome do estádio. Ele ficava em um terreno descampado onde antes existia um pinheiral, derrubado para a construção do metrô e do pátio de manobras da companhia. Logo atrás do terreno cedido pela prefeitura de São Paulo ao Corinthians, uma pedreira.
Ah, as pedreiras... As pedreiras contam a história de Itaquera e um pouco a do Corinthians. Em tupi-guarani, Itaquera quer dizer “pedra dura”. A rocha é o principal mineral da região e serviu para o bairro mostrar sua importância. Saíram de lá as pedras que construíram o Monumento das Bandeiras, por exemplo, no Ibirapuera. Um dos donos dessas pedreiras era o folclórico presidente corintiano Vicente Matheus, morto em 1997. Seu primeiro trabalho no Brasil, depois de chegar da Espanha, foi na pedreira de sua família, no vizinho bairro de Guaianazes.
Itaquera também era onde o comendador Sabbado D’Angelo sediava o seu rico império no começo do século 20. Rico empresário, dono da fábrica de cigarros Sudam (uma sigla para “Sabbado e Ursulina D’Angelo), seu mausoléu no cemitério da Consolação foi construído com as pedras itaquerenses. Para quem enxerga o bairro, palco da abertura da Copa do Mundo, como um estranho no ninho de competições internacionais, é preciso voltar quase 80 anos no tempo. Sabbado D’Angelo foi o organizador do primeiro evento esportivo internacional da cidade, uma corrida de carros pelas ruas dos Jardins, em 1936, o Grande Prêmio Cidade de São Paulo. Dos 20 competidores, seis eram estrangeiros. Terminada a prova, D’Angelo levou os competidores para um dos seus sítios em Itaquera para um churrasco de confraternização.  
O bairro, no entanto, demoraria a ser novamente notado. Antes de os projetos habitacionais da Cohab de São Paulo começarem a ser implantados, no fim da década de 1970, Itaquera era um aglomerado de lotes que dividiam a antiga estrutura do bairro, composta sobretudo por grandes fazendas – a do Caguaçu, da família Oscar e Maria Luiza Americano; a Morganti, dos proprietários de mesmo sobrenome. Não havia esgoto, água encanada, transporte, asfalto, escolas públicas e nem mesmo agências bancárias. Algumas fábricas instalaram linhas de produção em uma região agrícola, conhecida como Colônia Japonesa – era lá que os imigrantes orientais plantavam pêssego e cereja. A Sânio, multinacional nipônica, instalou uma grande linha de produção de rádios e TVs. Grande parte dos moradores trabalhou por lá.
A chegada do primeiro conjunto habitacional, as Cohabs José de Anchieta e Padre Manoel da Nóbrega – por coincidência, hoje vizinhas da Arena Corinthians –, inchou de uma vez o bairro. Em dois anos, três outros conjuntos foram construídos. De repente, o bairro saltava de 50000 moradores para quase 400000 habitantes. As famílias acostumaram-se a enchentes, à falta de segurança e ao transporte ineficiente. Uma lembrança familiar: não existia nem sequer uma escola pública em um raio de dois quilômetros de minha casa. Minha mãe conta que era preciso atravessar uma ponte de tábua de madeira que cruzava as duas partes de um córrego, cercado por dois morros cuja inclinação entre eles podia chegar a 50 metros. Um perigo.
Uma estação de trem, no centro do bairro, construída em 1875 e parte da antiga Central do Brasil, era o jeito mais rápido de atravessar a cidade até o centro. Mas a maioria o evitava. Ele circulava de portas abertas e quase sempre corria-se o risco de ser vítima de um tiro perdido dentro dos vagões – nessa época, o apelidamos de “trem bala”. A alternativa era o ônibus e, sem avenidas que ligassem Itaquera rapidamente ao centro, o trajeto durava duas horas.
A chegada do metrô mudou essa equação. As viagens ficaram mais curtas – agora era possível gastar apenas uma hora para alcançar o centro da cidade –, mas a superlotação dos trens incomodava. As fábricas fecharam – a Sânio preferiu mudar-se para a Zona Franca de Manaus. Sem emprego, o caminho do bairro para a cidade transformou-se em um inferno. Mesmo com a reforma do sistema ferroviário, em 2000, o drama do aperto ainda se insinuava.
Itaquera, no entanto, transformou-se muito nos últimos 15 anos. Uma avenida, a Jacu-Pêssego, cruzou o bairro para ligar as rodovias da Baixada Santista às que levam ao Rio. O poder aquisitivo pós-Plano Real levantou novas casas e prédios – os velhos quintais dos lotes dos anos 70 deram lugar a puxadinhos. Dramas urbanos, como as moradias precárias das favelas, começaram a aparecer a partir da década de 80. E um shopping foi construído.
estádio, inaugurado em maio deste ano, deve ser o novo impulso para os rumos da região. Deve levar emprego e transformar o bairro em polo para novos investimentos. Ainda falta o básico – tanto que o movimento em busca de escolas particulares cresceu muito desde as décadas de 1990 e 2000, enquanto as públicas registram quedas maiores de qualidade (em 2007, a pior escola avaliada pelo Enem em São Paulo ficava em Itaquera, na Vila Verde).
Para quem vibra com a Copa do Mundo, no entanto, é natural que esses percalços na construção de um bairro sejam vistos hoje como uma história com final feliz. O itaquerense está cansado das mazelas, quer o luxo dos grandes eventos sempre distantes. O mundo vai olhar para a região como talvez o estado (no sentido de grande catalizador de mudanças estruturais e sociais) jamais olhou. Nesta quinta-feira (12), será de lá que o Brasil vai dar boas vindas ao mundo, mesmo que esse percurso tenha sido lapidado com pedras duras. 

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