Na sessão do último dia 04 junho, o Ministro Gilmar Mendes indeferiu o pedido de Habeas Corpus nº. 121624 impetrado contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça, em que a defesa de um condenado pedia a nulidade do processo alegando a não observância do princípio da identidade física do juiz, pois o Magistrado que proferiu a sentença não foi o mesmo que presidiu a instrução processual. De acordo com o Ministro, a atuação do Juiz substituto neste caso se enquadra nas exceções previstas no artigo 132 do Código de Processo Civil, não configurando constrangimento ilegal a ser reparado.
A defesa alegou que a sentença foi proferida por um Juiz substituto em abril de 2009, durante o período de férias do Juiz titular que presidira a instrução, e que a decisão foi publicada depois que o Juiz titular já havia retornado a suas funções, violando os princípios da identidade física do juiz e o do juiz natural. O Ministro Gilmar Mendes, a meu ver corretamente,destacou que o princípio da identidade física do Juiz foi expressamente introduzido no Código de Processo Penal com o advento da Lei 11.719/2008, estabelecendo que o Juiz que presidiu a instrução deverá também proferir a sentença. Ressaltou, entretanto, que a aplicação do princípio não é absoluta (óbvio!), permitindo flexibilização nas situações excepcionais previstas no artigo 132 do Código de Processo Civil (c/c art. 3º., do Código de Processo Penal), como nas hipóteses de convocação, licença, promoção, aposentadoria ou afastamento do Magistrado por qualquer motivo.
Citando precedentes das duas Turmas do Supremo Tribunal Federal, o relator observou que a jurisprudência do Tribunal é no sentido de que exista correlação entre as provas colhidas durante a instrução e a sentença, ainda que proferida por outro Magistrado. O relator destacou o Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº. 116205, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que assenta a necessidade de moderação na aplicação do princípio do juiz natural de forma que a sentença seja anulada apenas “nos casos em que houver um prejuízo flagrante para o réu ou uma incompatibilidade entre aquilo que foi colhido na instrução e o que foi decidido”. Ele entendeu não haver qualquer vício a ser reconhecido no caso. Destacou que o fato de o Juiz titular encontrar-se de férias quando da conclusão dos autos para sentença é uma situação que se enquadra na expressão “afastado por qualquer motivo”, disposta no artigo 132 do Código de Processo Civil, que deve ser aplicado por analogia ao processo penal (art. 3º., do Código de Processo Penal): “Da mesma forma, é irrelevante a alegação de que o juiz titular teria retornado às suas funções antes da publicação da sentença, haja vista que no momento em que foi prolatada o referido Magistrado ainda encontrava-se no gozo das férias”, concluiu o relator.
A mim me pareceu acertada a decisão do Supremo Tribunal Federal.
Como se sabe, a Lei nº. 11.719/2008 alterou alguns dispositivos do Código de Processo Penal relativos à suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e aos procedimentos. Dentre outras novidades (boas e ruins), passou a estabelecer o Código que “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença.” (art. 399, §§ 1º. e 2º.), adotando-se o princípio da identidade física do Juiz, ainda que não com a mesma redação do art. 132 do Código de Processo Civil. Por ele, o Juiz que colher a prova deve julgar o processo, podendo, desta forma, “apreciar melhor a credibilidade dos depoimentos; e a decisão deve ser dada enquanto essas impressões ainda estão vivas no espírito do julgador.”[1] Evidentemente, e até por força do art. 3º., CPP, devemos ressalvar as hipóteses em que o Juiz “estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado.” (art. 132, CPC).
A propósito, vejamos estas observações de Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró: “Adotado no processo penal a identidade física do juiz, fatalmente haverá situações concretas que acabarão fazendo com que se tenha que excepcionar tal regra. Mormente quando se exige que toda a instrução se desenvolva perante um mesmo juiz, a identidade física do juiz não é uma regra absoluta: impossibilia nemo tenetur! Na ausência de previsão legal de hipóteses de relativização da identidade física do juiz penal, podem ser aplicadas, por analogia – pois nesse ponto sim, há lacuna –, as exceções previstas no processo civil. Assim, o “juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença” (CPP, art. 399, § 2o), “salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor” (CPC, art. 132, caput, parte final)(4). Nestes casos, mesmo que toda a instrução tenha sido presidida por um juiz, se, no momento de sentenciar o feito, outro estiver respondendo pelo processo, será este que deverá julgá-lo. (...) Outra questão é definir a quais procedimentos se aplicam a identidade física do juiz. A resposta exige uma interpretação sistemática da Reforma do CPP de 2008. A identidade física do juiz deve atuar integradamente com o sistema da oralidade, que tem como outras características a concentração e a imediação. Assim, nos procedimentos especiais que adotem estrutura concentrada, desenvolvendo-se mediante audiência una de instrução, debates e julgamento, terá incidência a regra da identidade física do juiz (CPP, art. 399, § 2º), por aplicação subsidiária das disposições do procedimento comum ordinário, nos termos do § 5o do art. 394 do CPP,(12) como, por exemplo: no procedimento especial da Lei n. 11.343/06 (art. 57, caput), no procedimento sumaríssimo da Lei n. 9.099/1995 (art. 81, caput) e no procedimento da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4898/65, art. 22 a 24). Já nos procedimentos em que há previsão de mais de uma audiência, como no caso do procedimento para os crimes eleitorais, não será possível a aplicação da identidade física do juiz. Qual a consequência daviolação da regra da identidade física do juiz? Predomina o entendimento de que a regra da identidade física do juiz estabelece um caso de competência funcional, cuja violação acarreta a nulidade da sentença. Discorda-se de tal entendimento. A competência trata da legitimidade do exercício da jurisdição entre os diversos órgãos jurisdicionais. É distribuição de competência entre órgãos, e não entre juízes fisicamente considerados. Mesmo no caso de competência interna, em um mesmo juízo, não significa que um juiz especificamente considerado seja definido como competente.”
Como afirma o Professor Dotti, é extremamente salutar a adoção deste princípio, pois “a ausência, no processo penal, do aludido e generoso princípio permite que o julgador condene, com lamentável frequência, seres humanos que desconhece”.[3]
Ao lado do Princípio da Identidade Física do Juiz, fundamental que tenhamos, também, o Juiz Natural, figura consagrada no art. 5º., XXXVII e LIII da Constituição, bem como nos arts. 8º. e 10º. da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Segundo José Frederico Marques, o princípio do Juiz Natural “surgiu formulado com esse nome, ao que parece, na Carta Constitucional francesa de 1814. (...)” Ainda em França, na Carta de 1830, figurava nos arts. 53 e 54. Contudo, Faustin Hélie “mostrou que o princípio do juiz natural remonta aos primeiros textos constitucionais da revolução.” Para Bluntschli, “a origem do princípio está na regra do direito medieval de que ninguém podia ser julgado a não ser por seus pares.”[4]
Vejamos a lição de Rogério Lauria Tucci: "O acesso do membro da coletividade à Justiça Criminal reclama, também como garantia inerente ao 'due processo of law' especificamente no processo criminal, a preconstituição do órgão jurisdicional competente, sintetizada, correntemente, na dicção do juiz natural (...) É por isso, aliás, que incidente ao processo penal a máxima 'tempus criminis regit iudicem', deve prevalecer, para o conhecimento e julgamento das causas criminais, a organização judiciária preexistente à prática da infração penal; (...) Ao imputado confere (a garantia do juiz natural) a certeza da inadmissibilidade de processamento da causa e julgamento por juiz ou tribunal distinto daquele tido por competente à época da prática da infração penal.”[5]
Ada Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antonio Carlos de Araújo Cintra afirmam que “as modernas tendências sobre o princípio do juiz natural nele englobam a proibição de subtrair o juiz constitucionalmente competente. Desse modo, a garantia desdobra-se em três conceitos: a) só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição; b) ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; c) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa à discricionariedade de quem quer que seja. (...) Entende-se que as alterações da competência introduzidas pela própria Constituição após a prática do ato de que alguém é acusado não deslocam a competência criminal para o caso concreto, devendo o julgamento ser feito pelo órgão que era competente ao tempo do fato (em matéria penal e processual penal, há extrema preocupação em evitar que o acusado seja surpreendido com modificações posteriores ao momento em que o fato foi praticado).”[6]
Portanto, O Juiz Natural é aquele constitucional, legal e previamente competente para julgar determinada causa criminal, imparcial e independente, garantindo-se-lhe a inamovibilidade (arts. 95, II e 93, VIII, CF/88), a irredutibilidade de vencimentos (art. 95, III, CF/88) e a vitaliciedade (art. 95, I, CF/88).
Notas
[1] Barbi, Celso Agrícola, Comentários ao CPC, Vol. I, Rio de Janeiro: Forense, p. 327.
[2] Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 200, p. 12/13, julho 2009.
[3] “O interrogatório à distância”, Brasília: Revista Consulex, nº. 29, p. 23.
[4] Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, p. 188, São Paulo: Bookseller, 1998.
[5] Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1993, p.121/123.
[6] Teoria Geral do Processo, São Paulo: Malheiros, 1995, p. 52.
Fonte: :JusNavigandi
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