Em 2010, católicos e evangélicos se uniram contra a legalização do aborto e deram início a uma campanha para que os brasileiros não votassem em candidatos que defendessem a proposta. A imprensa engajada, fazendo-se de isenta e leiga, armou um salseiro danado. Acusou o então candidato a presidente, José Serra (PSDB), de ter dado início a uma ação subterrânea para ligar a adversária petista, Dilma Rousseff, à defesa da legalização do aborto — como se ela, de fato, não fosse favorável à proposta. E ela era! Cansou de dar entrevistas a respeito. A acusação, de resto, era falsa.
A abordagem foi tão estúpida, tão cretina, tão obscurantista que até um ato claro de censura da Justiça Eleitoral foi tomado como o sumo da democracia: panfletos impressos por um grupo católico que recomendavam que não se votasse em candidatos favoráveis ao aborto foram recolhidos. A Polícia Federal foi mobilizada para recolher os papéis. Pessoas foram detidas por simplesmente portar um folheto. E tudo pareceu ao jornalismo filopetista justo, civilizado e democrático. Não! Aquilo era coisa típica de uma sociedade ditatorial, o que não somos — daí o absurdo adicional.
Os intelectuais petistas e filopetistas foram imediatamente convocados para inundar os jornais, revistas e sites com considerações sobre o “atraso” e o “reacionarismo” da campanha tucana — que, de resto, tucana não era. Se os votos dos não abortistas convergiam para Serra, isso se devia ao fato de que ele, afinal, era contrário à legalização do aborto, e sua principal adversária, favorável. Assim se dá em todas as democracias do mundo: os eleitores tendem a escolher pessoas com cujas ideias ou propostas se identifiquem minimamente. O único grupo religioso de alguma importância que fechou com Dilma foi a Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, também dono da Record. Ele é, afinal, um defensor fanático do… aborto e chega, o que é um disparate, a usar a Bíblia para justificar seu ponto de vista.
Não faz tempo, petistas e seus braços na imprensa paulistana voltaram a falar de aborto e kit gay. E indagavam: “Será que Serra vai recorrer a esses temas de novo?” — como se tivesse recorrido no passado. Reitero: a informação é falsa. O eleitor tratou do assunto por conta própria. Na imaginação do jornalismo “progressista”, não haveria, como no poema “Quadrilha”, de Drummond, um “J. Pinto Fernandes”, aquele “que não havia entrado na história”. O “Fernandes” da hora é Celso Russomanno, o candidato parido na mente divinal de Macedão e seus Macedinhos.
E agora? O tema “aborto”, por enquanto, está fora da campanha. Também não se tocou até agora nos tais “kits gays”. A “imprensa engajada e moderna” não quer saber desses temas. Eles são “reacionários”. Ah, bom! Mas a disputa pelo voto evangélico se tornou verdadeiramente frenética. E quem se dedica com mais afinco à luta é justamente… Fernando Haddad! Russomanno saiu na dianteira nessa área por conta de sua vinculação com Macedo. E outras igrejas neopentecostais têm se alinhado com ele.
Muito bem! Aquela imprensa que decidiu criminalizar um debate corriqueiro em qualquer sociedade democrática do mundo agora se limita a noticiar a disputa pelo voto evangélico, que se dá, desta feita, sem qualquer pauta, sem qualquer debate, sem qualquer conteúdo. Os fiéis são tratados como mera massa de manobra de seus respectivos e eventuais chefes religiosos, como se fossem nada mais do que negociantes em busca de vantagens.
Fernando Haddad, do PT, quer os votos dos evangélicos? Por quê? Em nome de quais valores? De que promessa? Quando se fez e se faz ainda o debate em defesa da vida — e, pois, contra o aborto —, que credenciais ele tem para pedir os votos desse ramo do cristianismo? No que respeita aos valores da família — que a “intelligentsia” petista costuma tratar com desdém —, o que ele oferece? Por que ele se nega a tratar do “kit gay” que liberou para a escolas, como se isso jamais tivesse existido? O que os evangélicos que ele tenta cativar pensam a respeito?
Vejam, então, que coisa fabulosa: quando os cristãos — católicos e evangélicos — estavam mobilizados em defesa de valores; quando, afinal de contas, tinham uma pauta a apresentar aos candidatos, quase foram mandados para a cadeia, sob o silêncio cúmplice, reitero, de boa parte do jornalismo. Agora que a disputa pelos votos desse grupo se dá com base em propostas não mais do que oportunistas, o que se noticia é a suposta astúcia deste ou daquele para conquistas pastores e líderes religiosos.
Evangélicos de São Paulo (e do Brasil), não se deixem enganar por trapaceiros! Procurem saber quais são os valores dos candidatos que pedem o seu voto. Já que eles estão organizados para conquistar os crentes, nada mais justo que saber se suas ações valorizam ou depreciam a crença.